13 de setembro de 2021
Beto Ricardo/ISA
A ideia de democracia é geralmente apresentada de maneira mais simples, como um regime com participação popular através do voto e da eleição de seus representantes políticos. No entanto, ela é um pouco mais complexa. Vivemos em uma conjuntura de denúncias dos movimentos de mulheres, dos movimentos sociais negros, da comunidade LGBTQIA+, das pessoas com deficiência, dos povos indígenas e dos trabalhadores e trabalhadoras, a respeito da falta de representatividade e direitos. Uma das principais razões para aumentar as disparidades sociais e, consequentemente, colocar em risco a democracia, se dá devido às políticas de privatização e flexibilização de acesso aos direitos sociais. No Brasil, altos e baixos conformam um gráfico preocupante, pois são muitos anos para construir e fortalecer a democracia, e poucos para destruí-la.
Desde a proclamação da primeira república brasileira, o país é marcado por golpes, ditaduras e mandatos incompletos na presidência. Hoje, vivemos um dos maiores ataques à nossa democracia, desde a imposição golpista do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, articulado pelos setores jurídico, parlamentar e midiático, que respondem aos interesses da elite nacional e internacional. Nesse sentido, pode-se deduzir que foram as próprias instituições da democracia que a colocaram em risco.
No entanto, ainda que a ameaça de um golpe militar esteja presente constantemente nos discursos do presidente, e de um certo respaldo das instituições jurídicas que mantêm na presidência alguém acusado de ser responsável por desviar dinheiro público na compra de vacinas para Covid-19, debochar da fome e do desemprego e negligenciar a vida, uma recente pesquisa Datafolha demonstra que a população não quer mais ditadura.
Na pesquisa, divulgada no dia 27 de agosto, cerca de 75% da população consideram a democracia o regime mais adequado. Além disso, 78% consideram que o regime militar foi uma ditadura. Números bastante expressivos para um país que elegeu um presidente que defende esse regime, e que lidou tardiamente e de maneira pouco satisfatória com a memória da ditadura de 64. Mas a memória, para quem viveu de perto este momento assombroso, está sempre viva e é ela que nos direciona ao passado para entender o presente e evitar que se repita no futuro.
“Tínhamos colegas que estavam fazendo mestrado na época em Rio Grande e que tinham tido a oportunidade de viver aquele final da década de 60, início da década de 70, na França, conheceram todo aquele movimento de 68 e trouxeram uma leitura mais ligada a uma esquerda democrática e um senso crítico muito forte em relação a questão da democracia”, conta Rafael Cruz, professor da Unipampa, do campus São Gabriel, que atuou no movimento estudantil no final da ditadura e era militante do PCB em Rio Grande, onde fez sua graduação.
Esse relato explicita a importância da memória e das experiências políticas passadas de geração a geração, responsável por construir a história dos povos ao redor do mundo. Em ditaduras ou sistemas educacionais enfraquecidos, a memória não tem muito espaço para transitar e existir.
O Brasil é um país que teve uma universidade tardiamente. Segundo Helena Sampaio, docente da Faculdade de Educação da Unicamp, “por mais de um século, de 1808 – quando foram criadas as primeiras escolas superiores – até 1934, o modelo de ensino superior foi o da formação para profissões liberais tradicionais, como direito e medicina, ou para as engenharias”. As primeiras universidades começaram a ser formadas apenas no século XIX, porém “o sistema de ensino superior brasileiro revelou, desde cedo, marcas de descontinuidades no que diz respeito, sobretudo, aos aspectos que envolvem sua relação com o Estado”. Nesse sentido, a autora identifica cinco datas-chave “referidos ao próprio processo de transformação política-institucional do país que definem, em linhas gerais, os períodos de mudanças de formato do sistema de ensino superior”, são elas 1808, 1898, 1930, 1968 e 1985.
Com a elaboração da Constituição Federal de 1988, marcou-se um outro período na história do Brasil, o período democrático. Um marco importante no processo da redemocratização, que ofereceu a possibilidade da construção de uma nova história para o país. Sem recusar a magnitude democrática da Constituição Cidadã, figuras importantes como Plínio de Arruda Sampaio e Cecília Coimbra, ambos militantes contra a ditadura, já afirmaram em alguns espaços que o resultado da Assembleia Constituinte foi, em partes, uma ilusão, sobretudo porque não garantiu a anistia geral e irrestrita. A democracia brasileira, no entendimento de quem viveu a ditadura e a abertura para o processo democrático, foi construída sob os escombros de um passado que sequer foi encarado de frente. Dessa maneira, ter uma consciência democrática sólida ainda é uma tarefa a ser construída.
Para Rafael, “uma verdadeira democracia é onde há consciência democrática”. Esse entendimento ele teve em uma greve da educação na Universidade Federal de Rio Grande (FURG), no final da década de 70, quando atuava no movimento estudantil.
A greve havia começado pelos professores e professoras, mas sem apoio dos/as estudantes. Na tentativa de buscar o apoio dessa categoria para fortalecer o movimento, ele e seus companheiros/as de partido fizeram algumas articulações. “Nas primeiras rodadas de discussões do diretório acadêmico (DA), a gente viu que a gente ia perder. Então o que a gente fez? Olha só, fizemos um estratagema fantástico, do ponto de vista de estratégia”, conta entusiasmado. “E a gente achou no nosso entender que aquilo era corretíssimo. Nós mandamos toda nossa gurizada, em todas reuniões de DA’s, cada um avaliou todos os argumentos que estavam sendo apresentados em todas as reuniões, reunimos, sistematizamos os argumentos contra a nossa posição e organizamos uma defesa” para a participação na assembleia estudantil que iria definir a adesão ou não à greve dos/as docentes. Então, alguns estudantes ficaram encarregados de, cada um/a, se preparar para rebater argumentos específicos. No fim, a assembleia foi vitoriosa para aderir à greve.
No entanto, após o ocorrido, o grupo sofreu diversas críticas sobre a maneira como conduziu o processo. A articulação deveria ter sido no sentido de construir a consciência da importância da união entre professor/a e estudante, e não a manipulação da assembleia. De qualquer maneira, o resultado disso tudo foi a criação da Estatuinte da FURG, a primeira Estatuinte democrática do Brasil, com paridade entre a comunidade acadêmica, no início da década de 80.
A ideia de democracia apresenta-se complexa justamente porque ela não pode ser um momento, um lapso ou uma sorte. Ela precisa ser uma realidade viva na memória e nas ações políticas, passada às gerações, como uma semente em constante processo de germinação. E ela, de certa maneira, se contrapõe ao metabolismo do sistema econômico neoliberal.
Esse sistema tem como objetivo fundante o lucro, com uma taxa que esteja sempre em ascendência. Essa configuração de mercado nos distancia dos pressupostos de igualdade, como aponta a cientista política estadunidense Wendy Brown. Em momentos de crise, quando essa taxa desacelera ou diminui, é o momento em que alguns economistas consideram que o sistema está em colapso. Quando isso ocorre, o Estado democrático, sob a atuação de política de parlamentares, ministros e presidentes, passa a ter uma atuação no sentido de não deixar que dessa crise, os banqueiros e grandes empresários, produtores rurais, sejam afetados. Para isso, a flexibilização das regras trabalhistas e da dinâmica de trabalho devem se adequar a um novo formato de produção, em que se produza muito, no maior tempo possível, e com um custo baixíssimo, pagando pouco pelo serviço.
Por isso hoje cada vez mais a rotatividade, os contratos temporários, a própria manifestação subjetiva da resiliência, são a saída da crise sem que os ricos precisem pagar um centavo por ela.
A democracia sofre em dois aspectos nesse sentido: primeiro nos riscos que traz à vida das pessoas com condições de trabalho exaustivas e insuficientes para sua sobrevivência, com casos de desnutrição e fome como vemos hoje no país; segundo, no processo de coerção que se acentua com perseguições políticas a lideranças sindicais, prisões políticas, ações truculentas das polícias em manifestações populares e greves, entre outros. Com o auxílio da imprensa hegemônica, que representa os interesses privatistas, vai-se criando uma ambiência de ódio, de intolerância, que resulta numa completa distorção da realidade.
Políticas como as reformas trabalhista e previdenciária, o congelamento dos investimentos públicos (EC 95), a reforma administrativa (PEC 32), os cortes orçamentários na educação e na saúde públicas, o redirecionamento dos investimentos públicos às instituições privadas, a privatização de empresas estatais, o avanço do desmatamento, o recuo e a ausência de demarcação de terras indígenas (Marco Temporal), a falta de acesso à alimentação e ao emprego: tudo isso são processos de desmonte e ataque à democracia.
Para Rafael, “se a gente quer construir democracia, a gente tem que educar para a democracia”. Segundo o professor, o diálogo e a formação política são fundamentais na atuação das organizações como sindicatos, movimentos sociais e partidos políticos. “A ação comunicativa, onde eu me transformo ao transformar o outro, é fundamental na construção de um comportamento democrático porque se eu não tenho um sentimento de alteridade, um sentimento de respeito da opinião do outro, de aceitar a divergência, não existe como construir democracia”. Sem isso, apela-se para ações autoritárias e “assim morrem as democracias”.
Podemos compreender, neste sentido, que a atuação política do presidente Bolsonaro constantemente ameaça a democracia, sobretudo por suas declarações inconsistentes que dão vida às fake news espalhadas em grupos de whatsapp dia após dia.
Recentemente, Bolsonaro inseriu uma Medida Provisória na lei do Marco Civil da Internet, a fim de dificultar a remoção de notícias falsas nas redes sociais. O argumento do presidente é de que isso seria censura. Mas, defender a democracia implica também em defender a verdade e, consequentemente, enfrentar e evitar que mentiras sejam espalhadas. Não há contradição. A liberdade de expressão, segundo a Constituição Federal, não pode ferir a democracia.
A candidatura do Bolsonaro “já nasceu, eu não vou dizer fascista, porque o fascismo histórico tem particularidades, mas quando a gente olha características do comportamento ou da visão de mundo de um fascista, não enquanto movimento social que é completamente diferente daquilo o que aconteceu na Itália ou na Alemanha, por exemplo, mas se a gente extrair as particularidades históricas e pensar em alguns elementos, a gente vai enxergar nessa visão autoritária que nega a alteridade, que nega a existência de um indígena ou de uma pessoa que tem outra crença, ou de uma pessoa de outra cor, ou de outro gênero, ele é um discurso antidemocrático”, afirma Rafael.
A luta social é uma maneira de educação política e, ainda que uma determinada pauta em votação no Plenário não trate dos direitos da coletividade, mas apenas de uma categoria, a ação de retirada desses direitos somado a outros, como temos visto, é um ataque direto à democracia e, portanto, a todos os trabalhadores e trabalhadoras e futuros/as profissionais. Em “é preciso agir”*, o dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), importante figura na luta contra o nazismo, escreve sobre a importância da empatia para a sustentação de um sistema democrático.
Mas além da empatia, a luta social tem sido o único caminho possível em defesa de uma vida digna, com oportunidades para todos/as, acesso universal à moradia e alimentação, e outros direitos básicos e fundamentais.
O país tem passado por um processo de mobilizações sociais. O acampamento “Luta pela vida” em Brasília, organizado por centenas de povos indígenas, a Marcha das Mulheres Indígenas, os grandes atos pelo Fora Bolsonaro, que denunciam a negligência do governo com toda a barbárie que assola milhões de famílias brasileiras e as paralisações de docentes. Todos esses são movimentos resistentes em defesa da democracia que afirmam: a vida não está à venda.
*É preciso agir, Bertolt Brecht
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo
Essa é a primeira matéria de uma série sobre a democracia que marcará o mês de setembro na Sesunipampa.
Assessoria Sesunipampa
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