Há dez anos foi sancionada uma lei que mudou o perfil racial e socioeconômico do ensino superior brasileiro. Existem contradições: o mundo universitário ainda é excludente para uma grande parcela da população – ainda que se tenha verificado considerável ampliação de ingresso, a ocupação das vagas reservadas, as condições de permanência e mecanismos de aperfeiçoamento ainda são apontados como necessidades, tanto na Unipampa quanto em outras instituições.
“Era a única aluna negra da turma, um curso majoritariamente composto por homens, majoritariamente branco, realidade discente e docente”, conta a funcionária pública Michele Corrêa. Agora mestranda, ela havia ingressado no curso de Engenharia de Produção da Unipampa, em 2007. Naquele momento, cinco anos antes da promulgação da Lei de Cotas, a universidade já reservava vagas para pessoas negras e outros grupos sociais.
“A angústia de não encontrar outras como eu me aproximou da área da educação popular, como forma de compreender o que afasta outras meninas negras pobres, oriundas de escola pública de ingressar nos cursos de exatas”, disse ela, em entrevista à Sesunipampa. O cenário atual do ensino superior público, embora modificado “como nunca antes na história da região da campanha”, conforme define Corrêa, ainda demanda aprimoramento de políticas. A realidade econômica, hoje, obriga famílias e jovens a renunciar ao ensino superior, priorizar a busca por emprego e renda.
É necessário demonstrar à sociedade, diz ela, o dever de reparação histórica decorrente de mais de 300 anos de escravidão, e cita algumas medidas: aperfeiçoamento das bancas de heteroidentificação, elaboração de estratégias de investigação e de prevenção às fraudes nas cotas e elaboração de meios mais eficazes para o alcance de dados, além da implementação ou ampliação de cotas raciais nos programas de pós-graduação em universidades federais. “Nos casos onde a implementação já foi feita, como nos programas da Unipampa, um aumento efetivo do percentual de vagas, sendo tal iniciativa totalmente pertinente para a completude do ciclo de afirmação da diversidade étnico-racial nos ambientes acadêmicos, sobretudo para ampliar a participação de pessoas negras também nos corpos docentes universitários, na gestão da iniciativa pública e privada e, ainda, nos espaços de poder político”, expõe.
“Nesta região as possibilidades de uma filha, um filho de um trabalhador, uma trabalhadora rural, de um capataz de estância, de uma empregada doméstica, de um comerciário, uma comerciária, ou seja, das trabalhadoras e trabalhadores ingressarem no ensino superior era muito difícil”, conta Corrêa, sobre a realidade da região onde está inserida a Unipampa. “Mais raro ainda era conseguir se mudar para Pelotas, para estudar na UFPel, ou Santa Maria, na UFSM, as federais mais próximas, assim as Cotas são a garantia do direito dos filhos e filhas daqueles que produzem riqueza as quais não desfrutam verem seus filhos e filhas terem acesso ao ensino superior e a uma educação de qualidade, como meus avós, meus tios e tias, meus pais viram a primeira geração da família conquistar um diploma universitário”
O mestrando Leandro Porto Marques, é egresso do bacharelado em Gestão Ambiental da Unipampa, e atualmente faz sua pós-graduação na Universidade Federal de Goiás. Formado no ano de 2020 com ingresso em 2016, ele relata que também foi a primeira pessoa da família a cursar o ensino superior em uma instituição federal: “só pude fazê-lo através de políticas de apoio tanto no ingresso como a Lei de Cotas, como através de bolsas de pesquisa, ensino e extensão e programa de permanência”.
Ele é militante da Associação de Pós-Graduandos da UFG, e, para além dos cortes de bolsas de pesquisa, cita a subida do custo de vida como um impedimento à carreira nas instituições. “Vê-se o acesso e a permanência no Ensino Superior se precarizando. É necessária uma crescente mobilização social, uma tomada de consciência coletiva e resistência política. Acho que não há receita para manter viva a mobilização a não ser a organização em coletivos estruturados e com agendas centradas nos interesses dos estudantes, da classe trabalhadora”, analisa.
“Existe o impacto visível e quantitativo de estudantes e egressos pretos, da classe trabalhadora e da classe camponesa”, conta. “É inegável quantitativamente o quando as Cotas reformaram os quadros de formatura, que ao comparar historicamente o estado do Rio Grande do Sul, e no país como um todo, eram compostos por pessoas brancas e com condições socioeconômicas excepcionalmente mais elevadas. Das turmas que conheci no curso de gestão ambiental, e das que tive mais contato, o número de alunos pretos foi se elevando ao passar dos anos.”
Para a professora Suzana Cavalheiro de Jesus, docente na área da Educação e dirigente sindical na Sesunipampa, há ainda muito a ser feito. Ainda que a Unipampa tenha partido de uma política autônoma de reserva de vagas, antes ainda da promulgação da Lei de Cotas, é preciso aprimoramento de condições estruturais, de assistência estudantil e disposição orçamentária.
“Acompanhamos os mais de 30 projetos que visavam, via Congresso Nacional, atualizar essa Lei, ampliando seu escopo; percebemos o quanto as universidades estão sendo ameaçadas com cortes orçamentários e com projetos como REUNI Digital, que visam um planejamento alternativo à classe trabalhadora e a todas aquelas e aqueles que historicamente foram excluídos do ensino superior. Esse cenário configura-se como uma ameaça às conquistas dos Movimentos Sociais Negros, dos Movimentos Indígenas e de todos os grupos que percebem nas ações afirmativas em educação”, argumenta.
Além disso, é preciso promover a ocupação de espaços em diversos âmbitos – “fazer-se presente em Comissões de Ensino, Pesquisa e Extensão, compor representações em Conselho de Campus e Conselho Superior, significa viver a universidade no seu sentido mais amplo. Usufruir da estrutura física, dos espaços de sociabilidade, da dinâmica organizacional das unidades acadêmicas, dos eventos científicos e culturais, das saídas de campo e do convívio entre as categorias que compõem a universidade, são aspectos que conferem o caráter social e popular da instituição. Isso se faz prioritariamente no ensino presencial, com as devidas condições materiais, cuja responsabilidade de garantia é do Estado brasileiro. Essa perspectiva se amplia ainda mais no interior do país, em espaços conservadores e oligárquicos, que precisam aprender a conviver com a diversidade, questionar a lógica da branquitude e responsabilizar-se por justiça social”, finaliza.
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