Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil
O Projeto de Lei 1904/2024 tem sido alvo de intensos debates no cenário político brasileiro desde sua proposição. A proposta visa modificar o Código Penal, que atualmente não prevê punição para o aborto em casos de estupro e não estabelece limite gestacional para o procedimento nesses casos.
O aumento dos casos de estupro em 2022, registra um total de 65.569 ocorrências envolvendo mulheres e meninas, conforme revelado pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, sublinha a vulnerabilidade persistente das mulheres no país. Especialmente preocupante é o alto índice de vítimas menores de 14 anos, que representam aproximadamente 74,6% dos casos reportados.
O Código Penal não penaliza o aborto quando necessário para salvar a vida da gestante. Exceto nessas circunstâncias, estipula penas de detenção de um a três anos para mulheres que abortam, reclusão de um a quatro anos para médicos ou outras pessoas que realizam o procedimento com consentimento da gestante, e reclusão de três a 10 anos para quem pratica o aborto sem o consentimento da gestante.
Caso aprovado pelos parlamentares, o projeto estabelece que o aborto realizado após 22 semanas de gestação seja punido com reclusão de seis a 20 anos em todos esses casos, incluindo os decorrentes de gravidez resultante de estupro, com a mesma penalidade prevista para homicídio simples.
Os proponentes da lei argumentam que, quando o Código Penal foi promulgado em 1940, não havia a intenção de permitir o aborto até o nono mês de gestação, considerando tal prática equivalente a “homicídio” ou “infanticídio” se ocorresse no último trimestre gestacional.
Flávia Retamar, militante do movimento social da Marcha Mundial das Mulheres, afirma que “O PL 1904/2024 representa um grave ataque aos direitos das mulheres no Brasil. Ele busca controlar e legislar sobre o corpo das meninas e mulheres, numa situação que é de saúde pública, é torturar as meninas e mulheres, obrigá-às serem mães, a manter uma gravidez indesejada. Ele dificulta ainda mais o acesso ao aborto legal, já assegurado em casos de estupro, risco de vida materna e anencefalia fetal. Isso significa, na prática, a normalização e naturalização de uma gravidez resultante de estupro, o que pode ter impactos devastadores na saúde mental e física das mulheres e meninas. Além disso, reflete a falta de discussão séria sobre os direitos reprodutivos das mulheres, incluindo acesso a contraceptivos e serviços de saúde sexual e reprodutiva. Essa medida compromete a igualdade de gênero, a liberdade e a autonomia do corpo das mulheres, resultando em uma revitimização daquelas que já sofreram crime de estupro. É fundamental resistir a essa legislação que ignora nossos direitos fundamentais.”
Flávia declarou ainda que “Nossa indignação e revolta mobilizaram as mulheres do Brasil, gerando uma poderosa onda de resistência contra a tentativa de homens brancos, heterossexuais, conservadores e fundamentalistas de legislar sobre os corpos das meninas e mulheres. Este projeto não está alinhado com os compromissos internacionais de proteção aos direitos das mulheres; pelo contrário, representa um retrocesso. Ele reforça a exclusão, discriminação e violação dos direitos, intensificando as dificuldades enfrentadas por mulheres negras, indígenas, que vivem em áreas rurais, lésbicas, bissexuais, transsexuais e outras, que já sofrem mais violência sexual e têm menos acesso a serviços de saúde pública. Isso compromete gravemente a adolescência e juventude das pessoas que estão gestando, ignorando completamente a realidade das mulheres brasileiras.”
Recentemente, esses debates foram intensificados devido à mobilização da sociedade e críticas severas, refletindo as divergências sociais e políticas profundamente enraizadas no Brasil. O projeto tem dividido opiniões entre defensores dos direitos reprodutivos e aqueles que defendem o que chamam de “proteção da vida desde a concepção”.
As críticas severas têm se concentrado na maneira como o projeto intervém nos direitos reprodutivos e no controle dos corpos femininos, destacando a complexidade dessa questão e as diversas perspectivas envolvidas. A luta pelos direitos das mulheres não pode ser seletiva.
Em 2020, um caso que gerou grande repercussão nacional foi o de uma criança de dez anos, vítima de estupro por parte de seu tio, que teve seu direito ao aborto assegurado por lei. O episódio provocou debates intensos, envolvendo questões éticas, religiosas e jurídicas, e destacou a complexidade da aplicação da legislação vigente sobre o tema no Brasil.
A 1ª Vice-Presidenta da SESUNIPAMPA, Letícia Ferreira afirma que “A interrupção do aborto a partir da 22ª semana parece ser sublimada pela queda de braço entre o Congresso, o Governo, o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Federal de Medicina. Antes de mais nada, a preocupação do projeto não parece ser com a saúde das mulheres e das meninas, mas com ganhos políticos para a extrema direita. Então eu acredito que esse projeto de lei, que em seu conteúdo iguala o aborto legal após a 22ª semana de gestação a um crime de homicídio, precisa ser pensado dentro de um contexto histórico e político. O Brasil é um país historicamente conservador e restritivo nas políticas de direito ao aborto. E esse projeto de lei apenas reforça isso.”
Reforça ainda na sua fala que entende que se trata de uma tentativa de controle dos corpos que pensam como femininos. “Com o PL 1904, a sociedade patriarcal reforça o controle sobre o que o corpo que se define como feminino pode ou não pode fazer consigo. Com isso, escancara-se a violência da maternidade compulsória. Parte desse controle misógino, seja quando ele ocorre pela ideologia que coloca para a mulher que ela somente encontrará sua plenitude na maternidade, ou seja quando terrivelmente ela é vítima de um estupro. Por fim, acredito que todas nós, mulheres, e especialmente as meninas, que são a principal vítima dos estupros no Brasil, inclusive dentro de suas próprias casas, só temos a perder com a intromissão patriarcal e masculina que tenta definir o que podemos ou não podemos fazer com nossos corpos. O PL 1904 de 2024 é um atentado aos direitos das mulheres.”
O PL 1904/2024, que foi submetido a uma votação de urgência na Câmara na última semana em um procedimento de apenas 24 segundos e sem debate, desencadeou uma onda de protestos tanto dentro quanto fora do parlamento. As críticas ecoaram não apenas nas redes sociais, mas também nas ruas, onde ocorreram diversos protestos em todo o país. Em resposta à pressão pública, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), anunciou que uma comissão será formada para discutir o projeto no segundo semestre. A decisão de adiar o debate foi tomada após uma mobilização intensa da sociedade nas ruas e nas redes sociais, incluindo o uso das hashtags “PL do Estupro” e “Criança não é mãe”, bem como pela aprovação da urgência sem o trâmite usual pelas comissões da Casa.
E na Unipampa, este debate está sendo realizado? A universidade criou e articula, em seus dez campi, o programa extensionista denominado “Comitê Institucional Unipampa Gênero e Sexualidade”. Este Comitê atua como um espaço articulador que efetiva a indissociabilidade entre extensão, ensino e pesquisa, potencializando ações vinculadas à temática de gênero e sexualidade.
Com o objetivo de dialogar, refletir e construir coletivamente alternativas para promover uma cultura de paz e equidade de direitos, o comitê busca dar voz e visibilidade às minorias historicamente excluídas, promovendo justiça e dignidade social. Desde abril de 2017, a Unipampa tem intensificado seu trabalho de sensibilização de servidores e comunidade externa, desenvolvendo ações específicas voltadas às temáticas de gênero, sexualidade e diversidade.
O Comitê Institucional de Gênero e Sexualidade foi oficializado pela Portaria nº 537, de 08 de abril de 2021, com representação em todos os campi e na reitoria. Atualmente, o comitê está passando por uma reformulação, estando vinculado à PROCADI (Pró-Reitoria de Comunidades, Ações Afirmativas, Diversidade e Inclusão.
Contudo, estas medidas ainda estão longe de dar conta das necessidades demandadas pela questão, uma vez que a invisibilidade histórica da violência de gênero e sexualidade requer um debate amplo e contínuo, além da criação e implementação de políticas públicas que assegurem a equidade de direitos.
Neste contexto, é notável a ausência do debate sobre direitos reprodutivos e a descriminalização do aborto nos espaços onde o comitê se reúne para discutir outras pautas importantes. A universidade pública, como espaço de reflexão crítica e formação de opinião, tem um papel crucial neste debate. Nesse sentido, é imperativo que não se deixem de discutir sobre temas sensíveis e urgentes como o direito das mulheres de decidir sobre seus próprios corpos.
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