16 de março de 2022
Foto: Adufmat SSind
Enquanto o Brasil vê, finalmente, a suspensão da necessidade de autorização do cônjuge para que a mulher possa fazer procedimentos cirúrgicos para não engravidar, o município de Sinop (MT), localizado a 479,4 km da capital mato-grossense, Cuiabá, caminha para trás. A Câmara Municipal, que tem apenas uma mulher como parlamentar, aprovou, e o prefeito Roberto Dorner (Republicanos) sancionou, um dia após o Dia Internacional de Luta das Mulheres, uma lei que proíbe qualquer manifestação, divulgação, publicação ou discussão em ambientes públicos e privados sobre gênero, sexualidade e direitos reprodutivos.
O argumento utilizado pelo parlamento municipal, que tem se mostrado um dos mais reacionários no país, é que o conteúdo sobre esses temas poderia promover a “desconstrução da família e do casamento tradicional”.
“Nós estamos impossibilitadas de falar, por exemplo, sobre anticoncepcional, camisinha, mudanças do corpo, em nome da família tradicional brasileira. Eu não sei por que eles chamam isso de modelo de família, mas a gente sabe que boa parte dos lares brasileiros são chefiados por mulheres. Essa lei veio como um ‘presente’. Foi sancionada pelo prefeito após o Dia Internacional das Mulheres, exatamente no dia 09 de março. E o prefeito validou uma ação inconstitucional dos vereadores, porque a lei foi aprovada apesar dos seus impactos serem publicamente conhecidos e, inclusive, com parecer jurídico contrário à aprovação”, explica a professora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) em Sinop, Clarianna Silva.
De acordo com a docente, as duas únicas pessoas que não votaram a favor da lei inconstitucional foram os vereadores professora Graciele (PT) e Mário (Pode), “que costuma votar com os conservadores, mas nessa ocasião, não votou”, acrescenta Silva, que também integra o Grupo de Trabalho Políticas de Classe para questões de Gênero, Etnia e Diversidade Sexual (GTPCGEDS) da Adufmat-Seção Sindical do ANDES-SN.
A 1ª vice-presidenta da Regional Pantanal do ANDES-SN, Raquel de Brito, reforça que a lei aprovada em Sinop é um ataque direto à educação, à autonomia dos e das docentes, especialmente do ensino básico, uma vez que proíbe, em nível municipal, qualquer palestra, folder, material físico ou digital que fale sobre o que os conservadores chamam de "ideologia de gênero".
“Por traz, na verdade, estão falando de conteúdos que tratem de direitos sexuais e reprodutivos, sobre a igualdade de gênero, sobre LGBTQIA+fobia. Ou seja, na verdade é a censura de todo e qualquer debate em relação aos direitos humanos, sexuais e reprodutivos, em nível de município, inclusive dentro de instituições educacionais”, pontua.
A diretora do Sindicato Nacional destaca que a legislação de Sinop também simboliza mais ataques do projeto “Escola sem partido”, que na esfera federal parece estar parado, mas que mantém capilaridade e avança nos estados e municípios.
“É importantíssimo que nós do ANDES-SN estejamos atentos e atentas e que não aceitemos esse tipo de retrocesso. É importante manter essa atenção. Sem contar que, mesmo sendo em nível de município, a gente precisa agora avaliar os impactos dessa lei para as instituições estaduais e federais que estão em Sinop”, ressalta.
“Estamos atentas e estamos na resistência, articulando a denúncia a esse tipo de avanço conservador sobre nossos direitos e sobre a Educação”, acrescenta.
Histórico de repressão O cerceamento às mulheres e a outros grupos sociais não se restringe à Lei 3046/22, já apelidada “Lei Conto de Aia”, em referência a uma série norte americana (The Handmaid's Tale, 2017). Clarianna Silva lembrou que a Casa de Leis sinopense tem um histórico nesse sentido.
No final do ano passado, a Câmara Municipal aprovou a Lei 3006/21, que proíbe a flexibilização do gênero neutro, também tendo como justificativa a defesa da família tradicional brasileira. Silva sustenta que essa lei também é inconstitucional e já foi denunciada ao Ministério Público de Cuiabá.
“O Ministério Público de Sinop, aparentemente, tem anuência com o comportamento da Câmara Municipal. Ele [MP] nunca faz nada. Então, nós começamos fazer as denúncias em Cuiabá”, afirma.
Houve também ataques à população negra. A docente relata que no Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, representantes de entidades organizadas em defesa da população negra foram chamadas pela vereadora Graciele para serem homenageadas e também para discutir igualdade racial.
Naquela ocasião, seria debatida uma proposta de lei que visava que a publicidade do município fosse mais diversa, com uma cota para pessoas negras e pessoas com deficiência, entre outros, para garantir maior representatividade. “Nas propagandas só aparecem pessoas brancas, mas segundo o IBGE, metade de Sinop é constituída por pessoas que se autodeclaram negras ou pardas, embora a narrativa permaneça de que Sinop é praticamente uma cidade do sul do país. O Movimento Negro se fazia presente, mas empurraram a aprovação da lei para a outra semana, justamente para desmobilizar. Na semana seguinte, tinha poucas pessoas do Movimento Negro e alguns professores apoiando a aprovação da lei, que nada impacta ao município, no que se refere a gastos. Mas chamaram a polícia para meia dúzia de pessoas, porque nós, teoricamente, quebramos o protocolo. Isso é, algumas pessoas verbalizaram indignação pela não aprovação da lei, mas ninguém agrediu ninguém”, conta Clarianna Silva.
Após ameaças de donos de terreno e anunciantes, a empresa contratada pelas entidades em Sinop apagou os painéis com críticas ao presidente. Foto: Adunemat SSind.
Em ocasiões similares, cita a docente, representantes do “Movimento Conservador” foram privilegiados. Na semana que antecedeu o Dia da Consciência Negra, enquanto as mulheres do Movimento Conservador passeavam pelos corredores da Câmara, o presidente do Conselho Estadual da Diversidade Racial, que pretendia solicitar apoio à aprovação da lei de cotas para a publicidade do município, não pode ir aos gabinetes sem prévio agendamento para “cumprir um protocolo”, que não foi exigido ao “Movimento Conservador”.
“O Movimento Conservador quebra o protocolo de covid-19, pode bater palma, pode gritar, e ninguém chama a polícia para ele. Nós, professores, meia dúzia de pessoas, saímos de lá indignados, porque historicamente vamos à Câmara e nunca tivemos problemas. Foi um gesto simbólico de racismo”, reclama.
Durante o debate sobre a Reforma Administrativa, em agosto do ano passado, a professora Lélica Lacerda foi hostilizada e ameaçada após apresentar um debate sobre decolonialidade. “A professora fez uma fala absolutamente qualificada sobre colonização, o modelo de colonização que nós ocupamos e como isso reflete nas sociedades contemporâneas, sendo sua linha de pesquisa. Desvirtuaram a fala da professora, ela foi ameaçada, disseram para ela nunca mais pisar em Sinop, inclusive por meio da imprensa local. Foram falas absurdas, violentas, descontextualizando absolutamente a intervenção da professora. O próprio vereador presidente da Câmara quis trazer a questão do racismo reverso, também com base na fala da professora”, lembra Silva.
Houve também, em maio de 2021, o episódio de outdoors que foram derrubados com uso de motosserra, porque continham cartazes com críticas ao governo Bolsonaro, expondo a alta de preços, os altos índices de desemprego e a negligência do governo Federal com relação à pandemia.
“Nesse episódio chamou a atenção o monopólio da mídia, que está nas mãos de particulares que se negam a fazer qualquer coisa que critique o governo. Os outdoors foram vandalizados, destruídos, depredados. Quem assinou os outdoors foi perseguido na cidade de todas as formas possíveis, repreendido, fotografado em ambientes, mapeados por pessoas do Movimento Conservador” afirma Silva, como que fazendo um pedido de socorro.
O mandato da vereadora Graciele não chegou a assinar os outdoors, mas a vereadora sofreu diversos ataques e violências políticas, especialmente com relação aos projetos de lei apresentados, em sua maioria reprovados pelos colegas. Entre as propostas estava a elaboração de um o mapa da violência contra a mulher e a Lei Maria da Penha municipal - que admitia prioridade para mulheres na reinserção no mercado de trabalho e no programa de habitação.
A professora de Sinop recorda, ainda, que no início da legislatura atual, o Conselho da Mulher foi coagido a retirar as palavras “transversal” e “equidade de gênero” de todo o seu estatuto para conseguir aprovar outras alterações necessárias à época. A coerção teria sido feita dentro da Câmara, mas as vítimas não denunciaram por medo.
Outro fato preocupante foi a retaliação da Câmara Municipal e da Prefeitura de Sinop à pintura da Greta Thunberg, feita entre setembro e outubro de 2019. “Em Sinop, hoje, é proibido pintar qualquer pessoa sem a aprovação dos homens da Câmara. Esses mesmos que fizeram duas menções honrosas à Bolsonaro. Uma Câmara que nunca inaugurou nada. Esses homens, inclusive, dão entrevistas e dizem para quem quiser ouvir que são bolsonaristas, todos os 14, só a mulher que não é. É um posicionamento claro deles”, destaca a docente.
Por fim, a professora aponta outro fato histórico relevante: um esforço conjunto para ignorar a presença de indígenas na região. “No museu de Sinop, quando ele era aberto, só havia homens brancos na história de Sinop a partir da colonização. Mesmo existindo trabalhos dizendo que havia indígenas aqui, que as castanhas teriam sido plantadas por indígenas. Quando da escavação da usina, acharam um sítio arqueológico com vários artefatos de cerâmica que sumiram sem nenhuma explicação à população sinopense. O município não quis ficar com esses artefatos porque teria que assumir que aqui, sim, foi terra de povo indígena, e assumir historicamente o que fizeram com esses indígenas. O impacto prático disso seria assumir as contradições do Agronegócio, desse modelo colonialista e parar de negar, reiteradamente, [acesso à] saúde a esses indígenas, tentando minar a Casas de Apoio a Saúde Indígena (Casai) de Sinop. Há sempre dificuldade de encaminhamento dos indígenas na rede municipal por causa disso. Sinop é o único polo da região que tem média e alta complexidade. O que há mesmo é falta de vontade do município em atender a esses indígenas. Mas nós precisamos que Sinop assuma que aqui é terra de povo Kayabi”, finaliza a professora da UFMT.
Fonte: Adufmat SSind., com edição e inclusão de informações do ANDES-SN
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