Sem comida no prato, sem diploma: o papel vital dos bandejões na permanência estudantil
- assessoriasesunipa
- 10 de jul.
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Atualizado: 16 de jul.

Falar em acesso à universidade sem discutir permanência é ignorar uma parte decisiva da trajetória estudantil. Entrar no ensino superior é, para muitos jovens, um marco de superação, mas o desafio não termina com a aprovação no vestibular ou a seleção no SiSU. Permanecer no curso, em muitos casos, é um caminho tão difícil quanto entrar. E uma das barreiras mais duras, embora pouco visíveis, é a falta de comida no prato. Nesse cenário, os Restaurantes Universitários, os populares "bandejões", cumprem uma função que vai muito além de servir refeições: eles alimentam sonhos e sustentam trajetórias.
Recentemente, a Unipampa comunicou que o corte de R$2,7 milhões no orçamento para 2025, aliado à liberação insuficiente dos recursos por parte do Governo Federal, já vem prejudicando os serviços e atividades essenciais da instituição. Nesse cenário de crise orçamentária, destaca-se a suspensão do funcionamento dos Restaurantes Universitários (RUs) em quatro campi: Caçapava do Sul, Dom Pedrito, Jaguarão e São Gabriel. A paralisação ocorreu devido ao encerramento antecipado (quebra) do contrato com a empresa terceirizada responsável pela gestão dos serviços, o que evidencia a fragilidade do modelo de terceirização, que está sujeito a instabilidades contratuais. Desde a adoção desse formato na Unipampa, a dependência de empresas terceirizadas tem causado impactos diretos na vida dos estudantes que contam com os RUs para garantir sua alimentação e, consequentemente, sua permanência na universidade.
Atualmente, cerca de 10 milhões de estudantes estão matriculados no ensino superior brasileiro. Mas os números de evasão mostram um cenário preocupante. Só em 2023, mais de 1,3 milhão de alunos abandonaram os cursos presenciais, uma taxa de evasão de 26,4%. Fatores como dificuldade financeira, trabalho excessivo e falta de políticas de permanência eficazes contribuem para esse abandono.
Criado em 2010, o Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) transformou a assistência aos estudantes em política de Estado, com ações voltadas à moradia, alimentação, transporte, saúde, entre outras áreas. Entre essas ações, o Restaurante Universitário se destaca como uma das mais fundamentais, garantindo refeições a preços simbólicos ou gratuitamente para quem mais precisa. Mas o papel do RU vai além do prato de comida. Segundo as pesquisadoras Adaíres Santos e Terçália Lira, da Universidade Estadual da Paraíba, o restaurante universitário ajuda a organizar o tempo dos alunos, melhora sua rotina e ainda promove saúde e bem-estar. Em outras palavras, ele é uma peça-chave para que os estudantes consigam seguir firmes nos estudos.
Maria Beatriz, estudante de Licenciatura em História no campus Jaguarão da Unipampa, utilizava o RU principalmente para o jantar. “Soube do fechamento do RU por amigos que moram na Casa do Estudante e, posteriormente, pelo Conselho do Campus, do qual sou conselheira atualmente. Moro relativamente longe do campus, então, no almoço, pego marmitex em um restaurante próximo da minha casa. Já no jantar, desde o fechamento do RU, preparo lanches em casa e, às vezes, utilizo a padaria perto do campus. Mas, obviamente, isso não substitui um prato de comida. A suspensão do RU implicou a redução da carga horária na faculdade, o que mudou completamente minha rotina. Agora preciso me organizar semanalmente para fazer mercado e garantir as refeições de terça e quinta, dias sem aula devido à redução.”
O impacto na alimentação foi apenas um dos efeitos sentidos por Maria. Ela relata, ainda, que seu padrão alimentar mudou drasticamente. “Além disso, como mencionei antes, a qualidade da minha alimentação também foi impactada. Com o RU, tínhamos refeições balanceadas. Tenho medo de ficar anêmica. As refeições no RU custavam apenas 4 reais. Atualmente gasto cerca de 90 reais por semana no mercado. Não sou contemplada pelo Plano Permanência e não recebo nenhuma ajuda financeira da universidade para lidar com essa situação. Meus amigos que participam desses programas relatam que o valor recebido é insuficiente. Ninguém consegue se alimentar com 90 reais por mês. Na assembleia discente foi deliberado o ensino a distância, o que, pessoalmente, me deixou apavorada, considerando problemas já vivenciados com esse método dentro da universidade. Fiquei triste ao ver colegas priorizando apenas problemas individuais, sem senso de coletividade para enfrentar a situação.”
Veja o relato completo a seguir:
Geise Loreto Laus Viega, gestora de contratos do Restaurante Universitário da Unipampa no campus Jaguarão, explicou que “atualmente, não há nenhuma empresa responsável pelo fornecimento das refeições no Restaurante Universitário do campus Jaguarão. Não existe contrato vigente no momento. O serviço foi suspenso pela empresa responsável pelo RU de Jaguarão e outros três campi devido a irregularidades contratuais, além de problemas administrativos e técnicos/sanitários que foram devidamente notificados, o que resultou na rescisão unilateral do contrato. Foi realizado um pregão para nova contratação, mas ele não teve sucesso, e atualmente um novo processo licitatório está em andamento.”
Ressaltou ainda que “Enquanto isso, a Universidade está fornecendo auxílio-alimentação para os estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Existe um plano de contingência para manter o funcionamento do RU, porém o funcionamento depende da contratação de uma empresa terceirizada especializada, o que foge do controle exclusivo da Universidade. A gestão da Unipampa reforça que o serviço de alimentação é uma prioridade e que está empenhada em melhorar a qualidade do atendimento e minimizar os impactos negativos, garantindo a segurança alimentar dos usuários. Para isso, foi elaborado um novo Termo de Referência, que assegura maior qualidade na prestação do serviço. Esse novo modelo já está sendo implantado em três RUs e será implementado no campus Jaguarão assim que uma nova empresa for contratada.”
Apesar disso, a estrutura dos RUs nas universidades brasileiras ainda é desigual e, em muitos casos, precária. A gestão desses espaços varia: algumas instituições mantêm administração própria, enquanto outras terceirizam parcial ou totalmente os serviços. Em ambos os casos, os problemas recorrentes envolvem falta de manutenção adequada, infraestrutura insuficiente, equipes reduzidas e baixa qualidade da alimentação oferecida. Além disso, nem todas as universidades contam com RUs em todos os campi, o que cria uma disparidade no acesso à alimentação. Filas longas, número reduzido de refeições e até atrasos no pagamento de funcionários por parte das empresas terceirizadas também fazem parte da realidade em várias instituições públicas.
Além das desigualdades estruturais, os modelos de gestão dos Restaurantes Universitários também influenciam diretamente na qualidade do serviço prestado. As universidades podem optar por autogestão, terceirização ou modelo misto. Na autogestão, a instituição administra todas as etapas do funcionamento do RU, desde a compra de insumos até a distribuição das refeições, com equipes internas especializadas. Já na terceirização, toda a operação é delegada a uma empresa contratada, cabendo à universidade apenas a fiscalização do contrato. O modelo misto combina os dois formatos, com diferentes formas de gestão adotadas conforme o campus. A escolha por terceirizar está geralmente associada à tentativa de reduzir custos e simplificar processos administrativos. No entanto, esse modelo pode gerar vulnerabilidades, como a dependência de empresas que nem sempre garantem condições adequadas de trabalho, qualidade nas refeições ou continuidade dos serviços.
Camila Maria Longo Pleszczak, estudante do curso de Geologia do campus Caçapava do Sul da Unipampa, afirma que “Eu frequentava o RU quase todo dia, pro almoço, principalmente. Janta só algumas vezes. Eu tenho plano permanência, então conseguia me alimentar de graça. A gente ficou sabendo do fechamento por e-mail institucional, mas, na verdade, já fazia alguns dias que o RU não abria, porque as funcionárias do RU não estavam recebendo. Enquanto elas não recebiam, às vezes não iam trabalhar. Elas só iam se ele pagasse o atrasado. Ele disse que a universidade não fez o repasse pra ele, e mandou elas não irem mais trabalhar. A gente, do movimento estudantil, se juntou assim que acabou o RU pra fazer comida num espaço que tem na Unipampa de Caçapava. O José Waldomiro Jiménez Rojas, que é o diretor do campus, arranjou um fogão e um botijão de gás pra gente. A gente se uniu com doações para fazer a alimentação. Atrapalhou muito a vida acadêmica da galera que se empenhou de verdade. Vários alunos falaram que iam ajudar e não ajudavam. Sobrou para algumas poucas pessoas. Eu me prejudiquei um tanto, alguns outros também. A gente ia fazer até o começo das férias, mas decidiu parar antes porque estava ficando muito puxado. Como era final de semestre, a gente achou melhor priorizar a universidade.”

Por outro lado destaca que “aqui em Caçapava, perto da universidade, não tem restaurante barato. Também não tem transporte público de qualidade que permita sair da universidade, ir pra outro restaurante e voltar a tempo. Me afetou porque fui ajudar na cozinha colaborativa e isso afetou meus estudos. De manhã eu chegava lá pelas nove e ficava até umas duas. À noite, começava umas cinco, seis horas e ia até umas oito, nove. Eu não enfrento tantas dificuldades financeiras porque recebo a bolsa. Agora eles deram um auxílio a mais pra quem está nessa situação, aumentaram o valor da alimentação. A gente ganhou cerca de R$300. Não é muito porque tudo tá caro, mas ajudou. A explicação da universidade foi que o dono da Nutri Center quebrou o contrato unilateralmente. A gente já abordou várias vezes a questão da qualidade da comida, das condições de trabalho das funcionárias, da falta de EPI, de manutenção, higiene. A gente já vem reclamando do RU faz um bom tempo. A fiscalização da nutricionista era só de vez em quando, parece que nossas reclamações não eram levadas a sério.”


Por fim, ela afirma que “Espero que agora a universidade tenha maior fiscalização, maior interesse na alimentação dos alunos, na qualidade do mesmo. E que cuide mais dos colaboradores. As funcionárias faziam milagres com o que eles mandavam. Eram insumos de baixa qualidade, e elas estavam lá, trabalhando, inclusive sem receber, para dar a melhor comida que pudessem. A universidade precisa olhar com mais cuidado para esses trabalhadores terceirizados.”
Evelton Machado Ferreira, coordenador acadêmico e responsável pelo contrato do Restaurante Universitário no campus Caçapava do Sul, afirma que “A empresa atualmente responsável pelo fornecimento das refeições no Restaurante Universitário do campus Caçapava do Sul é a AMI Serviços e Refeições LTDA, com contrato assinado em 5 de junho de 2025. O contrato está vigente, e o início das atividades está previsto para o dia 11 de agosto de 2025, após a realização de ajustes na estrutura física do RU. A suspensão do serviço ocorreu devido à rescisão contratual com a empresa Nutricenter, motivada por descumprimentos contratuais e irregularidades trabalhistas com as colaboradoras. Já existe uma nova empresa contratada, conforme mencionado, e o serviço será retomado em breve. Como medida emergencial, a universidade, por meio da PRODAE, está oferecendo bolsas no valor de R$400,00 aos estudantes que já são contemplados com a bolsa permanência. No momento, não há um plano de contingência em execução, pois estão sendo realizadas intervenções na estrutura do RU para permitir a atuação da nova empresa.”
Enquanto isso, os recursos destinados à assistência estudantil não acompanham as demandas. Em 2024, o governo federal destinou R$1,5 bilhão ao PNAES, verba que alcança apenas uma parte dos estudantes das universidades públicas. O contraste é gritante se comparado aos R$5,5 bilhões por dia gastos com o pagamento da dívida pública, o que evidencia as prioridades do país e a distância entre o discurso sobre educação e os investimentos reais.
A Reitoria da Unipampa informou que “No mês de maio/2025, houve a rescisão contratual de quatro contratos de serviço de alimentação subsidiada, em virtude de descumprimento de diversas obrigações contratuais por parte da empresa contratada. A empresa que teve seu contrato rescindido atendia os campi Caçapava do Sul, Dom Pedrito, Jaguarão e São Gabriel. Já foram realizados novos processos licitatórios para contratação de novas empresas, e com o resultado destes processos, o reinício do serviço do RU de Dom Pedrito ocorrerá em 01/07/2025; em Caçapava do Sul e São Gabriel em 11/08/2025; e em Jaguarão está ocorrendo um novo processo licitatório, devido a falta de empresas interessadas no primeiro processo. A paralisação não é decorrente de falta de orçamento. A situação se origina do fato de que esses quatro restaurantes eram gerenciados por uma única empresa. Por descumprimento contratual (por parte da empresa prestadora do serviço) e com base em orientações da procuradoria federal, foi realizada a rescisão unilateral do contrato, em função de irregularidades administrativas, técnicas e sanitárias adicionais.”
Ressaltou que “A Reitoria reconhece que a suspensão dos Restaurantes Universitários representa um sério risco à permanência dos estudantes na universidade. Por isso, foram implementadas diversas medidas para assegurar a assistência aos estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica. O valor do auxílio-alimentação foi aumentado, e o pagamento foi antecipado, além do compromisso de reabrir os RUs o mais rápido possível. A assistência estudantil em sua totalidade é uma prioridade para a gestão, e os Restaurantes Universitários estão inclusos nessa política. Portanto, a manutenção dos RUs é considerada uma prioridade essencial.”
Apesar do esforço da Reitoria em apresentar soluções e reforçar o compromisso com a assistência estudantil, a crise vivenciada nos Restaurantes Universitários da Unipampa revela uma fragilidade estrutural mais profunda. A dependência de empresas terceirizadas para um serviço tão essencial expõe os estudantes a instabilidades contratuais, interrupções abruptas e à precarização do atendimento. A ausência de um plano de contingência sólido, somada à demora nos processos licitatórios e à escassez de empresas interessadas, revela os limites do modelo terceirizado quando aplicado a políticas de permanência estudantil. Em um contexto onde o RU é, para muitos, a principal ou única fonte de alimentação adequada, essas falhas de gestão impactam diretamente o direito à educação.
Giuseppe Betino De Toni, 1º Secretário da Sesunipampa afirma que “O acesso aos restaurantes universitários é um direito dos estudantes e uma das principais estratégias de permanência estudantil das universidades públicas. A suspensão dos RUs, especificamente num cenário de fim do semestre, e de forma mais ampla, com queda geral do número de matrículas, é extremamente perniciosa, pois fragiliza os poucos e preciosos estudantes que temos num momento muito sensível da sua trajetória acadêmica. Isso é especialmente visível no caso dos novos estudantes, recém chegados, muitos de outras cidades ou estados, que acabam abandonando os cursos em função dessa insegurança, que em muitos casos impossibilita a permanência do estudante no campus, sem condições de ficar sem almoço, e muitas vezes sem condições de almoçar em qualquer outro lugar. Isso causa evasão e esvaziamento da comunidade acadêmica.”
Complementa que “a crise atual dá margem para discutirmos o modelo atual dos RUs, onde a permanência e assistência estudantil é vista como oportunidade de lucro de uns e precarização de outros, inclusive do próprio serviço oferecido. A terceirização da gestão dos RUs se demonstra ineficiente. É importante questionarmos esse modelo e buscar modelos alternativos, como por exemplo, a compra de alimentos produzidos pela agricultura familiar local, livre de agrotóxicos, e a possibilidade de minimizar ao máximo a terceirização do serviço, por ex. contratando o pessoal da cozinha diretamente, para garantir que o benefício seja entregue diretamente aos estudantes, e não seja subtraído e atravessado por empresas administradoras que visam apenas o lucro.”
Assista ao depoimento completo aqui:
Para quem vive longe da família, estuda em tempo integral ou depende exclusivamente da universidade para se alimentar, o RU pode ser decisivo para seguir no curso. É muito mais do que um refeitório: é uma política pública concreta que combate a evasão, protege a saúde dos estudantes e garante um pouco mais de dignidade no cotidiano universitário. Investir nos Restaurantes Universitários é investir na permanência, na igualdade de oportunidades e no futuro do Brasil. Mas isso exige mais do que vontade institucional, demanda compromisso político, financiamento adequado e gestão eficiente. Porque garantir comida no prato é, também, garantir direito ao diploma.








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